Uma mostra sobre os ecos de um dos maiores e mais representativos levantes liderados por africanos na história do Brasil, baseada em fundamentos filosóficos, históricos e intelectuais presentes na Revolta dos Malês. Essa é a proposta apresentada por “Ecos Malês”, nova exposição que ocupará a Casa das Histórias de Salvador a partir de 1º de novembro, às 11h, com entrada gratuita no dia da abertura, marcando o mês da Consciência Negra e das diversas atividades do Salvador Capital Afro. A mostra fica em cartaz até maio de 2025.
Com curadoria de João Victor Guimarães e co-curadoria de Mirella Ferreira, a exposição reúne 114 obras de 48 artistas e parceria com o coletivo Arquiteturas da Revolta, para pensar e refletir as influências contemporâneas da luta pela liberdade dos africanos escravizados e libertos em Salvador, durante o século XIX. A insurreição protagonizada por africanos muçulmanos, conhecidos como malês, em sua maioria haussás e nagôs, se destacou como um dos maiores e mais documentados movimentos de resistência escravista no Brasil, por sua intenção de libertar compatriotas escravizados e estabelecer um governo islâmico na Bahia.
Embora o movimento ocorrido entre os dias 24 e 25 de janeiro de 1835 tenha sido violentamente reprimido, o impacto da Revolta dos Malês foi duradouro, e teve importante contribuição para um crescente movimento abolicionista no Brasil, culminando na promulgação da lei Eusébio de Queirós em 1850, que proibiu o tráfico transatlântico de escravizados, além de deixar marcas significativas na história de Salvador e na luta afro-brasileira por liberdade.
Segundo o curador João Victor Guimarães, o público pode esperar uma exposição encantadora, pensada para dialogar e se aproximar por meio de seus artistas contemporâneos e com obras que vão além do que é visual. "Nós temos um cuidado de pensar como o corpo vai sentir nesse espaço. Salvador contemporânea precisa se ver para além do óbvio”, diz.
“Salvador tem a chance de ver, de acessar uma exposição que fala de uma revolta que aconteceu na cidade, feita por negros africanos escravizados e libertos, que não foi vitoriosa diante dos seus anseios, dos seus planos e propostas, mas foi vitoriosa na medida que permanece com os seus fundamentos na nossa sociedade. O eco não é o som original, Salvador não se tornou a República islâmica que os Malês queriam, mas Salvador também é um Eco do que os Malês ansiavam”, acrescenta.
O secretário municipal de Cultura e Turismo, Pedro Tourinho, ressalta a relevância da chegada desta nova exposição. “Queremos que a Casa das Histórias de Salvador seja, sobretudo, a casa das histórias que outrora foram silenciadas mas que hoje devem ser contadas, registradas, celebradas, e por isso nada é mais potente e simbólico do que ter aqui a exposição Ecos Malês, ecoando os 190 anos desse acontecimento na história da nossa cidade e do nosso povo”.
Ambientes expositivos - A exposição reúne uma ampla variedade de obras, incluindo esculturas, pinturas, fotografias, gravuras, site specific de paredes de adobes, macumbas pictóricas, que é como o artista Cipriano se refere à própria obra, bandeiras, patuás e vídeo performance, divididas em três núcleos: Encontrar, Ruas da Revolta, e Inventar (Liberdade e Defesa).
O primeiro núcleo, Encontrar, reflete o valor do encontro entre os malês para a organização do levante. A exposição destaca a importância do compartilhamento de informações e da construção de redes de apoio entre os participantes da revolta. De acordo com a curadoria, a Revolta dos Malês reuniu diferentes grupos de pessoas negras escravizadas e libertas em prol de um sonho por liberdade. Nesse sentido foi vitoriosa na medida em que conseguiu vencer as tecnologias separatistas do colonialismo que buscou destruir elos entre nações, famílias e semelhantes no processo de escravização. Ideal que pode ser identificado nas obras da artista Helen Salomão, que explora a intersecção entre identidade, afeto e laços familiares, especialmente a partir de sua experiência com o matriarcado na sua família.
O segundo núcleo, Ruas da Revolta, explora os ambientes onde a revolta ocorreu e dentre as obras apresentadas, está um mapa organizado pela equipe de pesquisa a partir do livro Um defeito de cor e atualizado com algumas informações históricas que não estavam presentes no livro. Este núcleo também apresenta artistas que vão pensar cidades, a exemplo de Rose Afefé, artista de Varzedo, no interior da Bahia, que volta a expor na capital baiana após 12 anos; Rose construiu Terra Afefé, uma "micro cidade" de três hectares na cidade de Ibicoara, na Chapada Diamantina, burlando várias burocracias e convenções financeiras, provocando a reflexão sobre arte, acesso, redistribuição de renda, reforma agrária, urbanismo e revolução.
Já o terceiro núcleo, Inventar (Liberdade e Defesa) aborda a busca dos Malês pela liberdade e o papel da resistência espiritual e religiosa. A curadoria entende que a Revolta dos Malês foi também em razão da necessidade de preservar a subjetividade e espiritualidade de uma parcela da população negra. Este núcleo inclui trabalhos de artistas como o estreante Karamujinho, com fotografia de gravuras feitas com Efun (ou a sagrada Pemba) sobre a pele e a artista baiana Jasi Pereira, do Engenho Velho da Federação, que, após expor esculturas em outros países, irá expor pela primeira vez um conjunto de gravuras sobre sua experiência de retorno à Salvador e ida a Luanda, em Angola, no ano passado. Inventar conta também com trabalhos do artista carioca Simba e colagens e vídeo performance da baiana Ventura Profana.
Para a doutora em história e professora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), Luciana Brito, uma exposição que reflete sobre a forma como a Revolta dos Malês ainda inspira um grupo de artistas, diz muito sobre o passado, mas diz mais ainda sobre a sociedade que ainda somos. “Isso aparece nos nossos anseios por liberdade, na luta contra o racismo e contra o ódio anti-negro e, sobretudo, na denúncia do ódio anti-africano, presente na sociedade contemporânea na forma do extermínio da população negra na Bahia, no Brasil e nas Américas, mas também nos barcos e balsas que partem do continente africano levando imigrantes para a Europa. Este é o cenário que nos diz sobre um mundo que ainda não acertou suas contas com as pessoas negras na diáspora”, reflete.
A professora acrescenta ainda que, por outro lado, essa memória da revolta também demonstra uma incansável insistência, por parte de pessoas negras, para serem reconhecidas como humanas. “A meu ver, pensar a Revolta dos Malês artisticamente e assistir como ela nos emociona e inspira através da arte, é uma maneira importante de expressar no presente um sentimento e um eco de orgulho, esperança e resistência, que ainda continua latente em nós”.